O atual chefe do Poder Executivo do Brasil teve sua eleição impulsionada por inúmeras promessas de campanha que visavam “romper” com a ordem estabelecida até então.
Dentre as propostas mais concretas, a ampliação de práticas econômicas liberais, com enfraquecimento do poder do Estado nas relações privadas e individuais, foi algo que finalmente saiu do papel e pôde ser colocado em prática, a partir da Medida Provisória nº 881/2019, convertida na Lei nº 13.874/2019.
A chamada “Lei da Liberdade Econômica” introduz novos dispositivos que têm a finalidade de proporcionar uma nova interpretação e integração dos negócios jurídicos e contratos firmados entre particulares, fundamentando-se em alguns pilares do liberalismo econômico, o que se verifica com a reiteração dos termos “liberdade”, “livre iniciativa” e “intervenção mínima do Estado”.
As alterações ocasionadas pela Lei, sobretudo em relação ao Código Civil, que contou com novas redações de artigos, privilegiam a autonomia da vontade das partes nas relações empresariais, visando proporcionar maior segurança jurídica e boas condições para o saudável desempenho econômico almejado.
Vale ressaltar, de plano, que referida Lei não influencia na esfera do direito do consumidor, uma vez que as relações de consumo não se encaixam na lógica de total liberdade e autonomia, uma vez que o âmbito consumerista é marcado pela relação desigual entre as partes, tendo em vista a vulnerabilidade dos consumidores ante os fornecedores e prestadores de serviços.
No âmbito empresarial, uma mudança que merece destaque é a alteração na forma para admissibilidade do incidente de desconsideração da personalidade jurídica.
Sabe-se que a desconsideração da Personalidade Jurídica, trata-se de uma medida excepcional determinada pelo juízo mediante requerimento do credor ou do Ministério Público, cuja finalidade é incluir os sócios e administradores de uma empresa no polo passivo da ação, de modo que estes responderão com seu patrimônio pessoal pelas dívidas da pessoa jurídica.
Primeiramente, cabe destacar que a nova Lei da Liberdade Econômica incluiu o artigo 49-A no Código Civil, que dispõe o seguinte:
Art. 49-A. A pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores.
Parágrafo único. A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos.
Tal disposição se presta para definir e reafirmar que a pessoa jurídica possui independência e autonomia perante seus sócios e administradores, que possui patrimônio próprio e que constitui uma realidade orgânica, representando um mecanismo próprio para a alocação de riscos, apta para estimular a economia com a geração de empregos e renda.
Em que pese a pouca utilidade prática do supracitado artigo 49-A, o Código Civil também teve seu artigo 50 alterado pela Lei da Liberdade Econômica, com uma nova redação de seu caput e a inclusão de cinco novos parágrafos.
O novo texto incluído traz critérios objetivos para a caracterização da desconsideração da personalidade jurídica, buscando proporcionar maior segurança jurídica e certeza sobre a efetividade de tal medida, enaltecendo, ainda mais os requisitos previstos anteriormente, quais sejam, o desvio de finalidade e a confusão patrimonial.
Primeiramente, necessário pontuar que a confusão patrimonial inicialmente é vista, quando ocorre o adimplemento de obrigações e encargos pela pessoa física ou jurídica e quanto constatada a inexistência de separação entre os patrimônios dos sócios e da empresa.
Assim, restando taxativa a ampliação de responsabilidades dos sócios, verifica-se que o ato está atrelado, tão somente, na figura única da pessoa física que obtenha benefícios em decorrência do referido abuso.
Tal medida, de certa forma, representa uma tentativa de afastar a desproporcionalidade muitas vezes causada com o deferimento de tal incidente em face de inúmeros sócios sem qualquer poder de administração.
Assim, ao individualizar as condutas passíveis de reconhecimento de confusão patrimonial, nos incisos do § 2º do artigo 50 do Código Civil, na teoria, a Lei busca evitar que sejam atingidas pessoas naturais que não tenham praticado nenhum ato abusivo ou ilícito, nem tenham se beneficiado do mesmo, como no caso de um sócio que não tenha sequer ciência e não obteve ganhos com a fraude perpetrada por outros membros da administração da pessoa jurídica.
Quanto ao segundo requisito previsto, o desvio de finalidade, foi mantida a definição de tal conduta como a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores ou viabilizar a prática de atos ilícitos e abusivos. Tal definição se baseia na teoria objetiva do abuso de direito, que engloba não só condutas dolosas nesse sentido, mas também as culposas, nas quais os sujeitos envolvidos atuam de maneira imprudente, podendo até prever ou evitar o risco de incorrer em desvio de finalidade, mas deixando-o de lado simplesmente por acreditar que tal evento não aconteça.
Em outras palavras, tais definições buscam afastar a desproporcionalidade e abusividade que eventual desconsideração da personalidade jurídica causaria para membros do corpo administrativo que não tenham se beneficiado dos abusos cometidos.
Outrossim, necessário ressaltar outra grande inovação trazida pela nova redação do artigo 50 do Código Civil, com o advento da Lei da Liberdade Econômica: a simples existência de grupo econômico não autoriza a desconsideração da personalidade jurídica, o que ocorria com certa frequência antes de tal dispositivo legal entrar em vigor.
O § 4º do artigo 50 é claro ao estabelecer que a mera constatação de grupo econômico não é o bastante para que seja deferida a desconsideração da personalidade jurídica, de modo que, obrigatoriamente, devem ser verificados os requisitos fundamentais para deferimento de tal incidente, que, conforme alhures mencionado, são a confusão patrimonial e o desvio de finalidade.
Por outro lado, estando verificados tais requisitos, num contexto em que a empresa devedora está inserida num grupo econômico, poderá ser deferida a chamada desconsideração econômica, indireta ou sucessão entre empresas, o que facilita muito aos credores na busca pela satisfação de seu crédito.
Em suma, a nova Lei garante que a simples verificação de um grupo econômico, sem a aferição de qualquer desvio de finalidade ou confusão patrimonial, não autoriza a desconsideração da personalidade de tal pessoa jurídica a fim de responsabilizar um grupo inteiro de empresas por conta de dívidas contraídas somente por um dos membros do grupo, o que confere uma certa segurança jurídica e econômica para as aquelas que fazem parte de grupos econômicos.
Inobstante o acima exposto, explicita-se ainda como última inovação trazida pela nova redação do artigo 50 do Código Civil, que a alteração da finalidade original ou expansão da atividade econômica específica da pessoa jurídica não configura desvio de finalidade, o que representa, mais uma vez, a forte tendência a priorizar a autonomia do indivíduo e sua liberdade nas relações privadas, vide §5º do citado artigo legal.
Conclusão
A partir da análise da nova Lei de Liberdade Econômica sob a ótica da desconsideração da personalidade jurídica, pode-se concluir que houve certo avanço perante a legislação que vigorava anteriormente, sobretudo no tocante à previsão expressa dos casos em que será deferido o incidente de desconsideração da pessoa jurídica.
A redação do artigo 50 se mostra oportuna ao definir de maneira objetiva os conceitos de desvio de finalidade e confusão patrimonial, restringindo as possibilidades de interpretações analógicas para casos concretos. Também merece destaque a proteção dada às empresas que integram grupos econômicos, submetendo a deferimento do incidente de desconsideração da personalidade jurídica à comprovação da ocorrência dos requisitos objetivos previstos no artigo 50 do Código Civil.
Neste novo cenário, em que as previsões legais direcionam a economia nacional para práticas estritamente liberais, privilegiando as relações privadas e a autonomia da vontade, com o progressivo afastamento da intervenção estatal, cresce a responsabilidade dos sócios e administradores das pessoas jurídicas para que observem e se submetam às novas disposições legais, priorizando, sobretudo, as questões de separação patrimonial e finalidade da empresa que representam, evitando que integrem o polo passivo como devedores e coloquem seu patrimônio pessoal em risco a partir do deferimento da desconsideração da personalidade jurídica.
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